Sunday, August 29, 2010

O Vermelho da Carne

Picture by Elaine Ianicelli
Povo sofrido, com cheiro, odor.
Arábia bendita em seus antepassados
onde mulheres são cães maltratados
ou bonecas enfeitadas com ouro
exclusivas e escondidas no horror.

Progresso inverso, cultura enraizada
no acerto ou no erro
onde um tem tudo e muitos têm nada
na pele escorre o suor e a cor do desespero.

A luz de um sol muito forte
arrebata a testa, os ante-braços, as mãos.
Judia as rugas de olhos que só vêem
e desejam não desejar a sorte e a morte.

Nossa liberdade vai de encontro
aos coros de um Alcorão interpretado
por homens crentes em Deus,
em renúncias e retribuições divinas.

O que faço aqui seria motivo
de morte por apedrejamento talvez, 
por isso rezo todos os dias por ter nascido livre,
solto para poder escolher quem ser.

Porém vi no Oriente um médio olhar
de uma esposa toda encoberta
que andava logo atrás de seu amo
acorrentada por ouro branco.

Quando passou senti vontade de despí-la toda,
arrancar aquela burca a tapas,
enfocar o senhor que a puxava
dono de um orgulho e prepotência tosca.

Seu corpo com certeza brilhava
debaixo daquele tecido negro
ainda se podia ver em seus passos 
o Prada nos sapatos
os brilhantes nos dedos
porém somente seu dono a desfrutava.

Diante de tanta diferença
me ocorreu a primeira vontade em me despir,
mostrar ao homem como viemos e como voltamos
o quanto somos belos sem nada,
frágeis e fortes nesta crença.

Em minha cabeça, naquele instante,
só me restaram o corpo, a arte,
a raiva, a luz que brilhava abundante,
o negro e o vermelho da carne.

Juliano Hollivier - São Paulo

Wednesday, August 25, 2010

Auto-Exposição

Picture by Elaine Ianicelli

Afirmar-se como indivíduo notável
digno de reconhecimento, elogios
estar na vitrine da curiosidade alheia
ou nos pensamentos de alguém que masturba as vontades ditas feias.

Despir-se na rua de uma amargura rasa
exibindo bunda, sexo e peitos
conseguir olhares cheios de desejos
ganhar atenção com manejos fáceis, em brasa. 

Podem ser estas as intenções
colocar-se à vista de olhos julgadores
buscar fama de forma rápida, sem razões
galgar suspiros, amores e alguns valores.

Se olhar um pouco mais adentro
pode encontrar um motivo em que se reconheça
que instigue a coragem dormida
que ilustre a nobreza em epicentro
algo de que jamais se esqueça.

Verá em mim todas e mais essas suposições
um ou mil motivos nada velados
beleza e horror que coexistem na pele
na alma, na pose e coragem tonificados.

Verá a superfície se só isso quiser
Verá Arte se assim puder
Verá Poesia se preparado estiver
e então poético se tornará
todo e qualquer motivo
que  me leva expor a alma, o medo,
o tesão,  o fetiche, a repulsa,
ou a mensagem mais importante
entre todas elas:
ser eu mesmo sem esconderijos
a menos que estes me dêem
algum prazer!


Juliano Hollivier - São Paulo

Picture by Elaine Ianicelli

Thursday, August 19, 2010

Amor


Picture by Elaine Ianicelli


Hoje vou tentar falar de amor
de todos que passarem pelos meus dedos
Hoje vou tentar fazer o amor valer
toda a pena do mundo, todos os riscos imundos
que corremos quando abrimos nosso coração a alguém.

Digo o amor que evolui da paixão
de uma sensação inexplicável de respiração contida
de um gelo na barriga só quando se pensa nele
de um milhão de vezes que se materializa 
na mente, na frente, na gente.

Refiro-me à exceção repetida
tantas e tantas vezes que nos faz crer
que somos realmente loucos querendo amar assim
querendo se jogar de tão alto andar
que é o tal "amar e ser amado".

Me arrisco falar desse edifício
de paredes densas de concreto queimado
com toques de flores jogadas pelo vento
transformando o austero em belo
o vício em bálsamo
o grão em ceia e o beijo em sexo.

Digo o sonho de viver um filme
com ele ou com ela de todos os sonhos
cena a cena de um romance louco
com brigas, desentendimentos e fazeres de pases
com dias vividos desedificantemente em mares
de volúpia, de alegria, de tesão.

Falo também do amor de amigo
que começa baixinho, numa coincidência talvez
num oi e numa ajuda recíproca
que cresce com o tempo e com as trocas
que amadurece na sintonia, no reconhecimento de coisas iguais
que dá fruto à primeira oportunidade de boa ação
Falo deste amor registrado na fotografia
num olhar, em dois olhares, num toque com a mão direita no peito
num apoio com a mão esquerda do outro 
no ombro nú, no pêlo livre de preconceito
na luz que brilha no seio, no colo
falo também do amor ejaculado no palco
de um trabalho feito a dois, para os dois, 
da beleza tão imensamente maravilhosa
de uma boca sobrepujada por olhos que dizem tudo
mas que o fazem duvidar se realmente existem
por que são lindos demais,
falo dos fios de cabelo, negros, curtos
que fazem qualquer ser humano se perder
na brisa da loucura, no devaneio de querer ter.
Falo deste amor que é somente
o meu amor de amigo.

Texto inspirado e dedicado à atriz e amiga Cris Ferrantini.

Juliano Hollivier - São Paulo

Wednesday, August 11, 2010

Reconhecer-se

Picture by Elaine Ianicelli

Olhar para o outro e ver somente ao outro
Olhar para si mesmo e ver apenas a si próprio
É o começo de uma guerra, de um colapso, de um absurdo qualquer.
Não doar seu sangue, sua voz, seu ouvido
Não dar sua alma, sua vida, sua vontade
pelo outro, para o outro, com o outro.
É sem dúvida o alimento para o egoísmo, para a insanidade, para o caos.
Agora quem é que quer se doar, se dar e compartilhar
num mundo onde todos se comem, se fodem e se pisam?,
onde uns renegam a merda que comem, o buraco onde evacuam
seus podres, suas mentiras, seus medos e imperfeições
e no instante em que podem jogam tudo para o alto
se vangloriando do passo dado sem reconhecimento algum.
Aprende-se ser um indivíduo indizivelmente individualista
no dia-a-dia, no corre-corre, no pega-pa-capá da inocência,
nas empresas e escolas que passamos.
Se esquece que em muitos momentos o outro é
necessário, insubstituível, particularmente desejável.
Observar-se e ser observado.
Início de uma trégua, de uma paz interna.
Dar seu peito, seu ombro, sua gana
é se permitir ver e enxergar o outro.
Me vejo no praticável em pé
ou nos metatarsos apoiado,
olho depois no canson riscado a carvão, pastel ou a lápiz de cor.
Me reconheço de outra forma, de um outro jeito,
através do olho do artista me vejo outro,
me vejo novo, me vejo louco, me vejo sempre.
Vejo o que todos vêem e o que poucos entendem
Vejo o que não gostaria ver em mim
mas que por ser parte de todos alí está para ser visto,
não dependendo da minha vontade.
No desenho ou no bronze fundido
reconheço meus sentimentos, meus prazeres,
descubro novos sonhos, novas curvas, novos ângulos de mim mesmo.
Às vezes a princípio nao vejo nada de mim neles,
poucos os casos, mas existem, e servem para o pensamento
como se questionassem minha pose, minha capacidade de expressar-me
E num relance nestes mesmos casos, me vejo criança
me vejo projeto de gente, me vejo embrião de um homem cheio
de coisas pra fazer, querer, conquistar, descobrir, crescer.
Trabalhos feitos com a expressão do meu corpo
são sempre conjunto de resultados mútos entre modelo e artista
são sempre fruto de auto-reconhecimento
de todos que se doam, partilham e oferecem 
sua alma para o outro, seus olhos para o outro,
E com o outro, vive para o destrinchar da
individualidade, do egoísmo, do individualismo 
naturais sim do ser humano, mas também necessários de evolução,
de reconhecimento e aprimoramento.
Olhar para o outro e ver também a si mesmo.
Olhar para si próprio e se ver outro,
se ver diferente, melhor, inerente.
Modelo de uma transfiguração,
desenhista, escultor, artista e eu
somos um só e seu trabalho espelho
que reflete a todos nós num reconhecer-se!.

Juliano Hollivier - São Paulo

Tuesday, August 03, 2010

Ser Um Modelo Vivo

Para quê? Será mesmo tão necessário?
Conhecer tão bem a si mesmo pode levá-lo a um mundo de perguntas respondidas, e isso acaba sendo chato. Você se prepara racionalmente para as coisas da vida e penso que talvez isso possa tirar a vivência real e intensa dos momentos.
Quando em horas e mais horas imóvel na mesma posição sou "objeto" de estudo. Analisado minuciosamente centímetro por centímetro, dos pés à cabeça. Uma análise feita pelo artista do meu corpo no espaço e de minhas interferências neste espaço. Sendo assim, o que penso, o que sinto, como vejo e como me expresso em determinada pose, reflete no que o artista capta e registra em seu trabalho. Permanecer imóvel e nú diante de pessoas é sem dúvida um exercício de auto-conhecimento. Momentos longos onde me vejo fora de mim. Como se saísse do próprio corpo, sentasse a alguns metros de distância e pusesse a me observar. Começo vendo os pés, onde estão, como estão, se estão limpos ou se não me esqueci de cortar as unhas, se estão contraídos ou relaxados. Vejo os vasos dilatados, veias saltadas que saem nas laterais, olho para eles e penso que são a base de tudo. Isso me faz refletir se estou "plantado" por inteiro no chão e se não estou, no mesmo momento, digo a mim mesmo: " - Trate de se apoiar direito na próxima pose Juliano". O que aconteceria se a pose fosse outra, onde os pés estivessesm no ar? É óbvio que a raíz seria outra, mas o sentimento e o pensamento e fisiologia do corpo seriam os mesmos.
Alí sentado me olhando vejo os olhos. Para onde olham, o que vêem, se estão brilhando, se estão cansados ou foscos. Se piscam muito tento contar quantas vezes piscam até ouvir que a pose acabou. Observo o quanto consigo manter o olhar vivo no ponto escolhido e vejo o quanto esse olhar diz tudo: como penso, como sinto, o que quero e para onde vou na próxima pose. Num instante penso se os artistas percebem isso; sim ou não isso não me incomoda nem interfere nos meus pensamentos e poses. Se vejo meus olhos foscos, interiorizados, automaticamente começo a pensar no "por quê" estou assim, e isso me faz viajar num processo de interiorização, em perguntas que normalmente não seriam respondidas mas alí, tendo o tempo como aliado, consigo respondê-las a quase todas. Mas é claro que não se deve pensar que tenho tudo resolvido em mim, ou que não sofro com as dúvidas naturais de alguém com 32 anos. Quem dera! Se vejo meus olhos brilhando, expressando felicidade, transmito através de todo meu corpo a energia e a vibração de uma felicidade que contagia, tenho certeza, a todos. A felicidade também é facilmente desenhável.
Da observação dos olhos abro o plano para o corpo todo. Vejo se a estética dele condiz com o que pretendo expressar na pose. Se a posição dos braços, mãos, tronco, cabeça estão na mesma vibração do que propuz quando "caí" naquela posição. Os segundos que separam as poses são suficientes para a proposição da próxima pose. Não faço, geralmente, um roteiro e mesmo que o fizesse o "aqui-agora" é que determina o trabalho e a execução dele. Portanto, lido quase que totalmente com o improviso do momento, com a ação-reação do movimento, com a resposta do corpo às proposições da mente. Interessante o termo que ouvi quando comecei a fazer este trabalho e que passei a usá-lo: o "cair na pose". Você literalmente cai nela, pois no momento em que o corpo em segundos materializa a intenção que foi primeiramente sentida, depois pensada racionalmente e então tudo isso refletido num movimento que se congela durante alguns minutos, existe um coeficiente de idealização versus realização que tem que ser considerado. È difícil calculá-lo com precisão e uma vez que você "cai" errado na pose, ou seja, quando se erra neste cálculo, você terá de suportar a dor durante o tempo pré-estabelecido. E como é difícil e sofrido esse erro. Nele você aprende a lidar com o insuportável, com seus limites de resistência física, resistência psicológica e de resistência à dor. Beiramos muitas vezes ao masoquismo por que para lidar com a dor um grande aliado é o prazer. Então é pelo prazer, mórbido às vezes, que conseguimos suportar a dor de uma pose "mal caída". E isso vicia, acreditem. Então na contramão deste masoquismo todo é preciso também um exercício mental para não nos tornarmos masoquistas de carteirinha. Uma pose errada é sempre um degrau para o auto-conhecimento. Você sente, pensa, calcula, cai na pose, vê que errou, começa a contagem regressiva para a dor e para o sofrimento, vive esta dor por minutos (que variam de 2 a 40 minutos muitas vezes), se questiona onde é que errou, lida com a frustação de não poder corrigir este erro e ainda com a tensão que na maioria das vezes não deve tranparecer para o artista. Particularmente tento usar tudo isso a meu favor, mesmo a sensação do desespero da dor que reflete no meu olhar, acabo utilizando como proposição. Acaba sendo uma proposição consequente de expressão, mas é sempre muito interessante ver os resultados nos desenhos. Às vezes uma pose que era para ser simples, serena, expressar tranquilidade e repouso se transforma numa verdadeira expressão do horror, o que para bons artistas torna-se um prato cheio!
Todos sempre perguntam no que penso enquanto estou alí imóvel e nú. Bom, difícil responder com precisão mas penso em tudo o que todos pensam e principalmente não pensam no dia-a-dia. Além das coisas pertinentes às proposições das poses, penso em Deus, se minha fé Nele e em mim mesmo aumentou ou diminuiu, na casa que deixei desarrumada, na louça que terei de lavar, nos problemas que preciso resolver, lembro de coisas que esqueci de fazer, penso na família, nas ligações que não tive tempo de realizar, nas contas que tenho que pagar, nos sonhos que foram realizados e nos novos sonhos que procuro fomentar, nas paixões que se transformaram em amizades ou no amor que sempre procuro, penso na roupa que quero comprar, no filme que quero ver, decoro meus textos de teatro mentalmente, escrevo mentalmente minhas poesias, visualizo espetáculos completos que ainda quero fazer, monto peças e personagens todos em pensamento, penso em sexo, em posições não só boas para o desenho mas é claro, também boas para uma boa transa, penso inúmeras vezes no que sou hoje e comparo com o que queria ser quando criança, lembro que no dia seguinte terei de ir ao médico, ou que no outro dia poderei realizar meu sonho de fazer cinema, penso nas brigas que já tive com amores passados, no ciúme que aprendi a controlar ou no "vai tomar no cú" que tinha de ter dito e não disse ou no "puta-que-o-pariu" que direi mais tarde, penso também no quanto sou feliz sendo quem sou, na gratidão que sinto pelos pais e irmãos que tenho, penso também de repente no quanto um artista ou outro é lindo, e no quanto um artista ou outro é bom, jamais penso fazer amor com nenhum deles, pelo menos no exercício do trabalho, penso na árvore que ficaria linda num bonsai, nunca penso em ereção, e se por acaso este pensamento começa a querer aparecer lembro de minha avó no banheiro ou do dia em que vomitei sem querer na cara de um amigo. Enfim, são infinitos pensamentos no exercício desta profissão!
Já o exercício do auto-conhecimento requer observação e concentração, e o trabalho do modelo vivo necessita do silêncio, ou pelo menos de um ambiente propício à meditação. Quaisquer ruídos e conversas paralelas dificultam a boa realização do trabalho, consequentemente num bom resultado do exercício de conhecer a si próprio. Essa concentração se inicia desde o momento precedente ao trabalho, com alongamentos e exercícios de uma respiração tranquila e vai até o final da sessão, normalmente de duas horas. E no meu caso, pode ser auxiliada com música, que normalmente proponho em meus trabalhos. E é nos concentrando que começamos a entender melhor quem somos e por quê e para quê estamos aqui. A concentração é ferramenta necessária para a Arte e exercitá-la me ajuda muito na vida profissional e particular. Para o ator a concentração é primordial e depois que comecei a trabalhar como modelo vivo, há quatro anos, senti que melhorei como ator. Me sinto mais maduro em cena, mais inteiro nas personagens, mais calmo e verdadeiro. E na vida e na arte também me vejo mais centrado. Claro que tudo isso é muito bom e maravilhoso, mas a evolução é uma escada sem fim e quanto mais a alimentamos mais precisamos evoluir e é sempre um movimento de mão única, ou seja, o conhecimento é primo. Uma vez que você sabe realmente sobre algo não há como deixar de saber; pode-se esquecer sim, mas o registro já está em seu cérebro, na memória de sua pele, de seu corpo e para resgatá-la basta acessá-la. Isso também é maravilhoso, mas o que quero levantar aqui é o fato de que todo este auto-conhecimento muitas vezes te faz não optar viver coisas por já saber no que vão dar. E aí é que mora o erro. Porque cada momento, cada situação vivida, são diferentes um do outro. Acredito que não devemos nunca generalizar os resultados do que aprendemos. Como o "cair nas poses" que narrei atrás. Portanto, neste caso o auto-conhecimento não é sempre necessário para que possamos nos permitir viver. Acho que até o auto-conhecimento precisa ser equilibrado e esse equilíbrio talvez se dê com a idade, à medida que envelhecemos.
Ser um modelo vivo não é apenas despir-se e se colocar imóvel numa posição, antes de tudo é permitir-se envelhecer de forma equilibrada, expondo não apenas seu sexo e seu corpo, belo, atlético, perfeito ou feio, obeso e imperfeito, mas também expondo seus erros, suas buscas, seu interno belo e terrível, suas incertezas e certezas, seu lado mais obscuro e velado pela moral. Assim, por isso, nunca ficamos "pelados" mas sim ficamos nús, sem as roupas e vestimentas da sociedade, da moral, dos exemplos copiados, das referências tomadas como próprias porém nunca questionadas.  Estar nú diante de muitos é estar propício a uma evolução sempre infinita, baseada na coragem necessária para se viver a vida de forma feliz!

Juliano Hollivier - São Paulo