Tuesday, February 22, 2000

Entrega Total

Poderia alguém se fechar num mundo extremamente único e pessoal a tal ponto que todo o belo e inefável VIVER se tornasse mero acontecimento?
Pólux, jovem peregrino no difícil caminho da busca pela Felicidade, se vê num ponto de sua vida em que à sua frente estão as consequências da imparcialidade, da não-entrega total, do vazio causado pela incalculável falta de apego aos sentimentos que o rodeiam. Às suas costas vertem tempos passados e vividos sofrivelmente, que, em seu mais íntimo e escondido saber, passam por ‘causa’ das citadas ‘consequências’. Claro que numa imersão nostálgica como essa, tudo se torna peculiar e todos culminam em seu próprio umbigo. Porém, valhamo-nos da maior característica que nos difere de um animal: a racionalidade; e nos permitamos cometer, uma vez ao menos, idiossincrasias como a de Pólux.
Aturdido em sua apreciação "egocêntrica", como se estivesse assistindo a um filme, se vê no lugar de Dante, ao ser conduzido do Inferno ao Paraíso sem que os tormentos dos homens já mortos lhe tocassem ou interferissem em sua caminhada. Se vê como uma das impossíveis gravuras de M.C.Escher, onde nunca encontramos início ou fim, sentido ou razão; como imagens desconectas e intrinsicamente ligadas umas às outras. Como se um lampejo de ‘sobriedade’ lhe resgatasse e o trouxesse a uma linha imaginária de igual imparcialidade, nosso peregrino tem a oportunidade de escolher que caminho tomar.

"… sabe quando você descobre que ama alguém, sente aquela falta de ar no peito, suas mãos tremem ao pensar que poderiam estar tocando seu corpo, quando o coração bate bestamente numa desritmia? … quando percebe que aquilo é tão importante quanto o ar que respira? ... sabe quando, depois de tudo isso ou ao mesmo tempo que isso, descobre que só você é que ama, e toda a força que sai de dentro deste sentimento é equalizada pela indiferênça da pessoa amada? … algum tempo se passa, penados momentos, para que a primeira desilusão se misture aos acontecimentos do dia-a-dia e passe desapercebida por nós mesmos."

Questionamentos vão tingindo em frações de segundos a mente de Pólux, que, como se num só pé sobre aquela linha indizível, tivesse de decidir sobre seu futuro desconsiderando um passado tão presente, sobre como ser tudo aquilo que desejava ser: uma pessoa Feliz. Em citação especial à "busca pela felicidade", interessante se torna observar algumas considerações: o homem medieval quando travava lutas com o cavaleiro oponente, era para que ao findar dos duelos recebesse como prêmio aquilo que lhe fizesse feliz. Les troubadours, aristocráticos poetas-músicos do sul da França, criavam suas canções com intúito de expressar os amores que sofriam. A felicidade para o homem renascentista era poder usufruir do devoto interesse ao saber e à cultura, explorando os mistérios de suas emoções e se percebendo como alguém num mundo que existe ao seu redor, raciocinando e questionando para que chegassem a um local feliz e comum. Já ao homem barroco, a felicidade estava no desígnio total ao Senhor. Surge o Romantismo após o Classicismo, para cravar a mais perfeita e inigualável identidade do ser-humano, a personalidade; e deixar resquícios até os dias de hoje, de que não somos nada senão frutos de nossa eterna busca pela felicidade. Ainda com movimentos extremamente importantes como o Modernismo, o Impressionismo, Expressionismo associamos todas as vertentes da cultura humanista a um único e grandioso propósito: to be "Happy"!

"... sabe quando estamos andando pelas ruas, sem a mínima pretenção de encontrar alguém? … quando já tendo ‘esquecido’ do quanto doeu um amor não correspondido, não se atenta para novos desafios? … sabe quando você está tão despreocupado em viver que nem percebe um novo amor chegando, de mansinho e diabolicamente tímido? … aos poucos ele vai se instalando do lado esquerdo do seu peito, e vai consumindo as vias vitais. Porém, diferentemente da primeira vez, como que para se camuflar e lhe confundir ainda mais, ele é vivido em alguns momentos de aguda felicidade … lhe dando a incerta certeza de que você está quase lá! … na Isla de la Felicità! ... saboreia com a nova pessoa amada momentos dignos de agradecimentos Divinos, pois estão te mostrando que desta vez não é só você quem ama, mas sim que é também amado ... sabe quando tudo isso está tão presente no seu dia-a-dia, e você começa a perceber que a tal felicidade não era tão difícil de se alcançar assim? ... e que a "mola propulsora" do relacionamento está cada vez mais forte e verdadeira? ... sabe quando, talvez por único desfrute do ‘destino’, um acontecimento incomum e inesperado vem lhe tirar novamente a pessoa que percebeu um dia amar ? ... e sem chances de resgate ou luta, já que ‘coisas da vida acontecem’?"

É momento de introspecção no cérebro-coração de Pólux. Seus arraigados exemplos de vida tocam-lhe a face com a delicadeza de um celta rude. É o início da aridez sentimental a que levou nosso jovem peregrino à curva-declive a que se encontra. Tal qual Dante, mais uma vez, ao chegar à porta do inferno juntamente com seu guia Virgílio, se assombra ao ler as inscrições sobre seu portal:
"VAI-SE POR MIM À CIDADE DOLENTE,
VAI-SE POR MIM À SEMPITERNA DOR,
VAI-SE POR MIM ENTRE A PERDIDA GENTE.
MOVEU JUSTIÇA O MEU ALTO FEITOR,
FEZ-ME A DIVINA POTESTADE,
MAIS O SUPREMO SABER E O PRIMO AMOR.
ANTES DE MIM NÃO FOI CRIADO MAIS NADA
SENÃO ETERNO, E ETERNA EU DURO.
DEIXAI TODA ESPERANÇA, Ó VÓS QUE ENTRAIS."


Sendo depois "confortado" pelo seu mestre:
"Livra-te desse medo circunspecto;
aqui toda tibiez esteja morta;
que chegando ora estamos ao conspecto
das tristes gentes das quais já te disse
que têm perdido o bem do intelecto".


Das alusões dantescas ao dissecar pormenorizado dos sentimentos de nosso personagem. Se vê percorrendo caminhos que só poderão levá-lo a onde está, e rapidamente começa a aceitar sua atual situação. Absorto em questões de cunho antropológico, Pólux se define como resultado de mais uma "prova de vida":

"... o que faria se algo assim lhe acontecesse? ... sairia procurando por pessoas disponíveis em qualquer esquina? ... comeria a primeira buceta que encontrasse, ou então daria para o primeiro que lhe quisesse comer? ... rindo ou chorando, é claro que não! Certo ou errado a primeira atitude é se afastar dos sentimentos que fodem com a vida da gente. É "fechar o cerco", se distanciar dos "humanos", descer ao mais baixo que um réptil, se igualar a uma nojenta barata! ... e não digam que é exagero pois a dor é desta vez incrivelmente maior do que a primeira, pois tudo foi experimentado, vivido, nada foi platônico! ... é tudo mesmo uma prova, lhe colocada diante do nariz para que caia se machucando, te ferindo bem fundo; uma porra de prova de vida."

Os segundos se transformam em anos e o tempo e o vento se encarregam de esmiuçar os fragmentos e inculcá-los no vértico horizonte do peregrino. Inúmeras vezes, em sua caminhada, cruza outras pessoas que julga estarem numa situação ao menos parecida com a sua. Frases feitas lhe são jogadas aos ouvidos, e nunca se deixando desviar do objetivo proposto na última introspecção, o de se vetar aos reais sentidos da vida.
Um tropeço lhe faz bater com a cabeça numa pedra, e ao acordar da vertigem avista um ser que a princípio julgava ser um animal qualquer, mas observando com aguçada curiosidade percebe que trata-se de um plebeu excepcional, sem os membros inferiores. Êste lhe aborda recitando as seguintes palavras: " – Caro amigo, vejo o inferno em seus olhos, sinto o vazio em seu coração! Não me contes, por favor, motivo algum para tanta desfacelação. Vejo também em seu corpo tanta saúde para obstáculos atravessar, vejo em seu fronte tanto saber para aprimorar e ampliar seus conhecimentos! Conte-me sim, por favor, um único motivo para ignorar tais bênçãos!". Nosso jovem peregrino delibera então com a criatura recém-encontrada questionando-lhe a razão de não se deixar cair diante de tantas impossibilidades, sendo mais uma vez acuado com resposta tão sábia: " – Lembre-se que as maiores possibilidades são aquelas que nós mesmos criamos, dentro de nossos limites. E jamais se esqueça de que estamos vivos para aprendermos com os tropeços que a vida nos dá!".
Cenas de um passado remoto projetam-se nos olhos de Pólux, cada segundo lhe traz de volta à linha imaginária; na derrocada de sua decisão. Fechar-se a um mundo de oportunidades de crescimento, privar-se da emoção do Amar novamente, mesmo que por alguns minutos, ou momentos; impossibilitar-se de perder o fôlego mais uma vez por alguém, de tremer ao se imaginar com alguém, de descompassar as batitas de seu coração, aguardando que elas acompanhem o bater de um outro coração. Tudo por ingênuo medo, com alguma razão sem dúvida, mas por puro e ingênuo medo da entrega total.
Pólux desequilibra-se em seu único pé apoiado na imaginária linha e num lance rápido se vê enclausurado no fel de sua amargura medrosa. Aquilo o apavora imensamente, e o tamanho deste medo suplanta a todos os outros, dando-lhe forças para se apoiar nas duas pernas e imergir em mais uma de suas introspecções, porém desta vez utiliza-se de sua bela voz dizendo a todos os que podem ouví-lo:

"... sabe quando você está no chão, caído, sem forças pra se levantar, e olha pra uma formiguinha, tão minúscula carregando um pedaço enorme de graveto? ... sabe quando você acorda pra vida com um simples fato desses?
Então, sabe quando podemos ver, depois de muitas amostras, que realmente estamos aqui para aprendermos a viver e não simplesmente para ‘viver’? ... É, isso é realmente possível! ... quando nos permitimos errar, errar, errar, e mais inúmeras vezes errar para que em algum momento possamos aprender e nunca mais esquecer! ... sabe quando percebemos que isto só é possível se nos permitimos entrar de corpo e alma, sem medos e ‘neuras’ numa situação qualquer, numa relação qualquer? ... sabe quando nos entregamos totalmente a alguém que, pelo menos naquele momento, vale toda a pena do mundo, e isso nos traz minutos (para alguns) e décadas (para muitos) de verdadeira Felicidade cúmplice? ... veja, se forem minutos vividos tenho certeza de que serão os melhores minutos vividos (assim como foram os que vivi com aquele outro amor), os minutos que realmente estive inteiramente presente, dividindo-os com alguém que naquele tempo com certeza me mereceu, pois me fez a pessoa mais Feliz. Se forem décadas então, não precisamos nem falar, não é? ... sabe quando você começa a achar que toda sua nostalgia valeu pra alguma coisa? ... tipo quando você reconhece que precisava passar por aquilo e tirou da situação a melhor lição possível? ... Pois é, isso acontece e aconteceu comigo. Hoje sei que sou capaz sim de me entregar totalmente a alguém, sem medo ou preocupações, pois hoje e sempre, o que quero (e queria desde o começo) é Ser Feliz! Sejam segundos, minutos ou décadas!"


*Citações de "A Divina Comédia - Inferno" de Dante Alighieri.
P.S.> A linguagem propositalmente não-coloquial utilizada pelo narrador, chata e difícil, é para aceitarmos que a Vida talvez não seja para ser compreendida e sim apenas vivida!

Juliano Hollivier